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Claret profundamente humano

30 pinceladas para um quadro - Severiano Blanco Pacheco CMF

Todos nós temos em mente a atividade apostólica quase sobre-humana e a profunda experiência espiritual -alguns dizem mística- do nosso Fundador; ambas estão amplamente documentadas. Mas não é demais observar que Claret age e ora desde sua psicologia pessoal e desde o momento histórico e cultural em que lhe toca viver. São fatores que em uns casos limitam, em outros fortalecem e sempre caracterizam a forma concreta que adquire a ação de Deus nele. Por isto queremos enumerar uma série de pinceladas da sua “humanidade” inigualável.

1. Ele fala expressamente da sua compaixão e ternura. São valores humanos que servem de base à sua vida sobrenatural, que nele aparece no seu ser de apóstolo. Sua entrega apostólica é fruto deste sentimento para com seus irmãos, os homens, a quem quer livrar de todo mal e sobretudo da perdição eterna. Um dos seus propósitos é ter para com os demais “coração de mãe”.

2. O Padre Claret manifestava alguns detalhes no relacionamento com seus companheiros e não deixava passar a oportunidade. Em junho de 1850, os membros da Congregação já são doze e ele presenteia a cada um com uma imagem de um apóstolo, a quem deseja que seja o patrono ou modelo; não se esquece nem de J. Caixal, que, por ser sacerdote de Tarragona, não vivia com o grupo. Este mesmo sacerdote é convidado à festa do primeiro aniversário da Congregação (EC I, p.395 y 410).
Anos mais tarde, presenteia cada membro da Congregação com um “breviarium marianum” (que o Padre Escola publicou com seu apoio) e pede expressamente ao editor que o envie sem encadernar, para que cada um “o faça a seu gosto”.
Recordava o onomástico de pessoas queridas e as felicitava por este motivo (por exemplo: Madre Paris, no dia de Santo Antônio e o Padre Xifré, no dia de São José).
Quando recebeu em “La Granja” a visita dos Padres e Estudantes aspirantes da comunidade de Segóvia, lhes disse: “Aos que vêem me visitar em minha casa, como penitência, costumo servir chocolate” e os serviu.

3. No exercício do governo, o Padre Claret teve especial esmero em exercer a delicadeza.  Desde sua infância caiu na conta que corrigir os operários com aspereza era não só falta de respeito, mas também ineficaz e até contraproducente. Sendo Arcebispo de Santiago teve que intervir -por mandato de Roma- em um problema jurídico delicado da sua Diocese sufragânea de Porto Rico; a carta ao interessado (Padre Jerônimo M. Usera) é um modelo de doçura, confiança na pessoa, agradecimento antecipado pela colaboração que espera, etc. (EC I, p.l228s).

4. Uma característica do seu temperamento é a atividade.  Em alguns exercícios espirituais faz o propósito de não perder um minuto de tempo. O desejo de aproveitá-lo o levou, em Roma, a fazer exercícios espirituais enquanto esperava o retorno das férias do Prefeito de Propaganda Fide. Em Canárias diz que vai sozinho de uma parte a outra “como desesperado”. Para ser confessor real, uma das condições que coloca é não ter que perder tempo em salas de espera.

5. Provavelmente o Padre Claret tenha sido algo inconstante. Observa-se que quando começa uma obra ou época da sua vida se entrega com todo empenho, mas logo vai afrouxando. Concretamente, aos dois anos de estar em Cuba, concluída a primeira visita pastoral, diz: “já estou cansado de ser arcebispo... acho que já cumpri minha missão nesta ilha” e esteve a ponto de apresentar sua renúncia (EC III, p. 130).

6. Tinha um talento extraordinariamente prático. Desde jovem tecedor idealizou novas técnicas para esta indústria. Em sua pregação gostava de fazer comparações com o “funcionamento”: da máquina a vapor, da arma de fogo, etc. O mais curioso dele que conhecemos neste campo é a descrição da técnica de um balão voador; concebeu-a devido a que, quando chegou para a visita pastoral pela primeira vez a Holquin, viu lamentavelmente o que a população tinha preparado para festejar sua chegada, caindo o balão logo por terra com a pessoa que o pilotava, e este ficou ferido.

7. Durante muitos anos esteve especialmente preocupado em praticar a mansidão; talvez não tenha sido casual, pois nele, além de algumas ocasiões, podia ser que existisse predisposição para a indignação.  O caso mais conhecido: um “trapaceiro” se faz chamar por Francisco Claret e se faz passar por irmão do célebre missionário e se dedica a fazer trapaças; “este tal é um farsante e digno de que a autoridade o prenda” (EC I, p.212).

8. Também o preocupou especialmente a humildade, e nem se estranha isto. Inquietava-o sua imagem, a opinião que dele pudessem ter. Em sua juventude, sentiu-se muito humilhado ao ser enganado por um companheiro de negócios (Aut 73-75). Sendo confessor real se questionou muito sobre o que diria o povo se o visse a serviço de uma Rainha que tinha reconhecido a usurpação dos Estados Pontifícios. A precaução diante de possíveis críticas à sua economia o leva a ter as contas econômicas em nome de outro: Sr. Pedro Naudo, administrador da Livraria Religiosa.

9. Na vida de Claret há momentos de verdadeira desorientação.  Já desde sua longa procura vocacional (tecedor, cartuxo, padre diocesano, jesuíta...). O discernimento com relação ao aceitar a mitra de Cuba ou não lhe durou dois meses (4 de agosto a 4 de outubro de 1949); o de continuar ou não na corte depois do reconhecimento do Reino da Itália, cinco meses de reflexão e consultas (julho-dezembro de 1865). Vive uma autêntica angústia no final da sua vida com relação à Congregação: “Os senhores e eu nos prejudicamos mutuamente sem querer, sou um ente misterioso... sou como um prófugo...” (EC II, p. 1485).

10. Provavelmente, devido à sua grande capacidade de iniciativas, o Padre Claret tenha sido um tanto independente, apesar do seu grande carinho pela comunidade. Sua decisão de ir a Canárias a tomou sem consultar Caixal, com quem estava elaborando o grande projeto editorial da Livraria Religiosa. Sua volta de Cuba para Espanha a fez deixando em grande incerteza seus sacerdotes colaboradores naquela ilha; embora, posteriormente tenha incorporado vários deles no seu seminário do Escorial. Não é provável que tenha consultado a comunidade de Vic sobre a proposta do Padre Estêvão Sala para sucessor seu em Santiago de Cuba.

11. O Padre Claret, seguidor apaixonado de Cristo pobre, pôde ter sido um bom economista. Sabe empregar o dinheiro tirando o maior proveito; a administração do Escorial foi modelo de transparência e de eficácia (chegou a ser um “pequeno negócio” segundo a Rainha Isabel II) e, ao mesmo tempo, de desprendimento, pois nem ele e nem o vice (Sr. Dionísio González) receberam algum dinheiro por isto. Para a Livraria Religiosa contou com o grande colaborador Sr. Pedro Naudo, e com ele pôde levar a administração de modo muito eficaz, vendendo os produtos muito baratos e sem perigo de bancarrota.

12. Foi o Padre Claret um homem bucólico? Certamente não foi um poeta, mas teve uma grande sensibilidade pelo campo e seus trabalhos e nos chamam a atenção seus muitos conhecimentos. Além dos detalhes que se destacam em seu livro pedagógico Delicias do Campo e Reflexões sobre a Agricultura, foi notável seu interesse por aproveitar melhor o grande terreno do Escorial, no qual fez plantar 10.000 árvores frutíferas (algumas nogueiras talvez existam ainda hoje) e não se conformava com qualquer árvore: “destas frutíferas, algumas mandei trazer da Catalunha, da vila Berga, onde se cultivam as melhores peras” (El Confesor... p.351).

13. Conheceu e praticou o Padre Claret alguma técnica de relaxamento? Não podemos saber, mas é muito provável, já que durante vários anos da sua vida não dormia mais que três horas diárias (e dizia não precisar de mais), tendo grandes preocupações e desempenhando simultaneamente sua espantosa atividade.

14. O Padre Claret, talvez por motivos pastorais, tenha tido sua afeição à psicologia. Em carta enviada a Santa Micaela (EC I, p.l525ss) descreve até seis tipos temperamentais, em algum caso relacionando tipo psíquico e formas físicas: a mulher “linfática” é “gordona, de carne fofa”. Em carta a Caixal sobre como encadernar os livros que são enviados a Cuba, dá a entender que conhece a psicologia do povo daí: “aqui o povo gosta muito de cores alegres, como exemplo, branco, rosa, azul claro, amarelo claro” (EC I, p.554).

15. Interpretava Claret arbitrariamente a Bíblia? Certamente transmite algumas leituras modificadas de propósito, levando a água ao seu moinho; teria sido um bom rabino targumista. Em Mt 10, 20 lê “o Espírito do vosso Pai e da vossa Mãe falará por vós” (Aut 687), e em Atos 20, 24 acrescenta uma palavra à frase de Paulo: “Nada me importa (...) contanto que conclua minha carreira e cumpra o ministério da Palavra que recebi do Senhor Jesus”(EC III, p.504). Não se trata de leitura caprichosa, mas de apropriação personalizante. Claret utilizou os melhores comentaristas católicos acessíveis em seu tempo.

16. A Obediência de Claret não foi cega; e sabia pesar circunstâncias e fazer epiquéias. Conhecemos sua estranha viagem (1837) de Sallent para Vic via Olost (0nde vivia seu irmão José); ia pedir ao Vigário Geral que revogasse sua destinação como Cura regente de Cupons. As revoltas carlistas não lhe permitiram chegar a Vic, mas ficou em Olost; e desta vez se sabe que fez uma viagem não de batina, mas com vestes civis (ECI, p.81).

17. A criatividade foi uma característica constante no apostolado de Claret; e também lhe deu seus desgostos. Em um livrinho composto em 1847, intitulado “Irmandade do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria”, coloca todos os níveis da igreja em pé de evangelização; a um grupo de mulheres, devido ao papel que lhes atribuía, lhes dava o título de “diaconisas”. A obra foi proibida pelo Arcebispo de Tarragona, D. Echanove (EC I, p.260).

18. Claret teve que ser homem de equilíbrios. Uma e outra vez afirma seu distanciamento da política; mas muitos de seus amigos catalães (começando pelo Padre Xifré) não puderam ver com bons olhos que fosse confessor de uma Rainha rodeada de ministros liberais. É particularmente estranha a prolongada amizade e colaboração entre Claret e Caixal, já que este era um carlista convencido, e inclusive vigário geral castrense do pretendente D. Carlos.

19. Era o Padre Claret catalanista? A palavra pode admitir muitos matizes; é normal que gostasse do povo da sua terra e apreciasse seus valores. Suas constantes falhas na ortografia indicam que nunca aprendeu bem o castelhano; e foi desaconselhado pela Irmã Patrocínio para ser o confessor da Rainha, por ver nele um catalão que não se acomodaria ao gênio dos Madrilenhos. A Cuba levou consigo um grupo de sacerdotes e leigos quase todos catalães e continuou convidando seminaristas com a carreira adiantada para que a terminassem em Cuba e ali os foi ordenando para sua Diocese; chegou a ordenar 36 deles. Mas, quando fala dos espanhóis que vivem em Cuba, despacha assim: “os piores são os que vieram da Espanha e especialmente os catalães são muito maus; são péssimos; nunca confessam, nem comungam, nem vão à missa; todos vivem amancebados ou têm ilícitas relações com mulatas e negras e não apreciam outro Deus que o seu próprio interesse” (EC I, p.705).

20. O Padre Claret era paciente, generoso; mas o realismo o levou à conclusão de que do lado de algumas pessoas não é possível trabalhar; por isso fez expulsar do Escorial o antigo monge Jerônimo Pages (EC II, p.296), e ele mesmo expulsou o presbítero Francisco Sansoli da sua madrilenha igreja de Montserrat (EC II, p.524).

21.O  Padre Claret era perspicaz. Queria que certas operações financeiras não se fizessem em seu nome, mas em nome de algum dos seus colaboradores, talvez pela má fama que tinha de manejar muito dinheiro. Dos seus anos de Catalunha conta que, quando lhe perguntavam de onde era, respondia que da cidade de Sallent, se a pergunta vinha de um liberal; ou da Diocese de Vic, se lhe perguntava um carlista.

22. Manejou muito dinheiro? Sem dúvida o caso da medalha (Aut 360) não é tudo. Pôde ter vivido com tranqüilidade, dado seu espírito empreendedor e habilidoso e também pelas rendas anexas a seus cargos. Como Arcebispo de Cuba percebia uma quantia de 18.000 duros anuais. Em Madri lhe pagavam (frequentemente com atraso) 9.000 para a manutenção da casa (várias pessoas), 6.000 como Arcebispo demissionário e 3.000 por ser confessor real; e muitíssimo dinheiro que lhe davam os que o conheciam e admiravam suas empresas. Não quis dinheiro por ter prestado serviço como presidente do Escorial. E exigia pontualmente ditas rendas para poder dar livros (o fez em quantidades grandes) e auxiliar os necessitados. Aplicou a si mesmo o ditado de Tobias: “Se tens muito, dá muito; se pouco, mesmo deste pouco dá com boa vontade” (EC II, 130). Os que o conheciam de perto não se perguntavam o que fazia com tanto dinheiro, mas como podia fazer tanto com tão pouco. Curiosamente, entre seus modestos gastos pessoais se destaca o de sapatos.

23. Para com algumas mulheres teve grande admiração e cultivou sua amizade: Madre Sacramento, Maria Sancho Guerra, Jacoba Balzola,... Mas não superou o preconceito anti-feminino que corria. A Caixal diz: “devemos nos lembrar que tratamos com mulheres, que sempre andam precipitadamente e com pouca reflexão e são perniciosas, que nunca param até saírem com as suas e depois às vezes correspondem muito mal (...)” (EC I, p.354). E, com relação às luzes sobrenaturais da Madre Maria Antônia Paris sobre ele, escreverá a Pio IX: “não se deve acreditar em todos os espíritos, sobretudo quando falam por meio de mulheres” (EC II, p.88).

24. Asaúde física de Claret não foi boa; daí que se deve admirar mais ainda sua grande atividade. Quando era seminarista sofreu a “tísica”. A dor no joelho que o fez sair do noviciado foi persistente; foi operado, mas sem grande êxito, em dezembro de 1849. O clima de Roma nunca lhe caiu bem. Em Cuba teve épocas boas: “já saberás que todos os dias estou pregando e confessando e dando audiência de dia e de noite, sempre que me chamam e apesar de todo este trabalho estou sadio e robusto” (EC I, p.659). Nos seus anos de Madri sabemos que estava com hérnias e usava proteção. Sua vista também foi se cansando e pelo menos nos últimos anos usava óculos; o livro de contas da sua casa de Madri menciona o gasto de 24 reais “por umas lentes” (El Beato II, p.715). Uns óculos se esqueceu em uma igreja de Daimiel, quando voltava de Lisboa em 1866, relíquia que se recuperou há poucos anos. Outras figuravam no museu de Vic anterior à guerra civil.

25. Fazia Claret acepção de pessoas? Seu olhar se centrava sempre no que mais colaborasse para a glória de Deus. Mas entre a multidão de pessoas e instituições não se pode negar que teve suas preferências e distinções. Houve dois privilegiados no conhecimento da sua interioridade: Pe. Carmelo Sala e Pe. Paladio Curríus.  E entre as Congregações Religiosas em cuja fundação interveio, depois da dos seus Missionários -cuja profissão emitiu antes de morrer-, por nenhuma se interessou tanto como pelas Carmelitas da Caridade ou Vedrunas (as “nossas”, costumava escrever ele aos Claretianos).

26. Foi Claret um homem ingênuo? Teria que distinguir áreas. Não se enganava facilmente. Um Padre de Santiago, Miguel Hidalgo, censurável por diversos motivos, tentou justificar-se diante do Arcebispo com uma carta cheia de “provas” de boa vontade; Claret, em vez de acreditar nele e responder a carta, escreveu a seu Vigário Geral: “Ao Miguelito não lhe respondo, porque sei que é uma mania sua para desculpar-se...” (EC I, p. 1807). Em outras áreas Claret é mais confiante; é o caso da sua “Refutação de Renan” ou da pretensão de que os seminaristas do Escorial, com sua bagagem estritamente “eclesiástica”, serão capazes de combater os erros de Strauss, Hegel e Schelling.

27. Era Claret providencialista ou previdente?  Não se pode duvidar da sua confiança em Deus; a expressão “confiemos em Jesus e Maria” é uma constante em sua linguagem. Mas não se esquece dos meios humanos. Em fevereiro de 1868, sete meses antes da revolução, aconselha o Padre Xifré a fundar uma casa em Argel, “pois, quando vier a perseguição que se fará à Religião na Espanha possam refugiar-se os da Congregação em Argel, que está aqui tão perto” (EC 11, p. 1245).

28. Claret conheceu o êxito e o fracasso. Sua primeira atividade como pároco de Sallent não teve êxito. Escreveu à Prefeitura para que impedisse que um grupo de gente de mercado ficasse gritando na porta da igreja e o estorvava na pregação da missa principal (EC I, p. 76s). Não pôde impedir que a Rainha reconhecesse o Reino da Itália. Várias das suas grandes iniciativas do seu tempo de Madri pereceram com a revolução de 1868. No entanto, como pregador popular, tanto nas regiões rurais como em Barcelona, Madri ou Las Palmas, experimentou grande êxito.

29. Claret teve uma grande resistência psicológica, agüentou muito. Seu sucessor à frente do Escorial, depois de dois meses, já não podia mais; tudo eram dificuldades, tropeços e calúnias. Claret comentou “parece que o Escorial é o potro para atormentar os que devem cuidar dele” (EC II, p.1290); mas ele o governou por nove anos.

30. Claret foi atrevido, e não temerário. Em seus tempos de missionário pela Catalunha, apesar da sua disposição a morrer pelo Evangelho, esquivava-se com sagacidade de quem podia atentar contra sua vida. Desterrado em Paris, avisava aos correspondentes que as cartas não fossem enviadas em seu nome, mas em nome de Mr. Laurent Puig” (seu capelão, Pe. Lorenzo Puig cmf), certamente para que os inimigos não ficassem sabendo do seu paradeiro.