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As tensões dos religiosos jovens

Nos países do hemisfério norte há poucos religiosos e religiosas com menos de 40 anos. A maioria tem mais de 60 anos. Este é um fenômeno novo na história recente da vida religiosa que se deve aceitar serenamente e enfrentar com lucidez.

Nos países do hemisfério norte há poucos religiosos e religiosas com menos de 40 anos. A maioria tem mais de 60 anos. Este é um fenômeno novo na história recente da vida religiosa que se deve aceitar serenamente e enfrentar com lucidez. Perguntamos: Que tipo de relacionamentos se estabelecem entre uma maioria de anciãos e uma minoria de jovens? Acontece um verdadeiro encontro ou existe um abismo generacional? Que convicções, que estilos de vida estão dominando? Como julgam este fato uns e outros? Que podemos aprender juntos?

Nas Ordens e Congregações há uma grande preocupação pela situação dos religiosos jovens. Mas esta preocupação parte de motivações muito distintas e se expressa de modos diversos.

Preocupa, em primeiro lugar, a escassez de jovens. Em geral, a escassez se associa à sobrevivência mesma das instituições e às dificuldades para o desenvolvimento da própria missão segundo as estruturas atuais. Naturalmente, no diagnóstico da escassez costuma-se analisar raízes psico-sociais, institucionais e pessoais. As opiniões vão desde os que pensam que os números atuais são os normais em uma sociedade aberta e em uma igreja ministerialmente adulta (frente aos “anormais” números dos anos 40-60)[1] até os que consideram que a raiz fundamental da escassez está na heterodoxia que se infiltrou em muitos institutos religiosos nos anos posteriores ao Concílio Vaticano II[2].

Para alguns, no entanto, o grande problema atual não é tanto a escassez (sobre o que nem sempre é fácil agir) quanto ao índice de perseverança. Como é possível um número significativo de religiosos e religiosas jovens decidirem abandonar seus institutos logo depois da profissão perpétua ou da ordenação sacerdotal? Este fato é conseqüência de uma formação deficiente ou tem algo a ver com o tipo de vida religiosa que encontram ao terminarem a formação inicial? Deve-se, sobretudo, a processos pessoais de desintegração ou intervêm outros fatores ligados à situação geral da vida religiosa na igreja e na sociedade?

Para outros, a preocupação vai mais além do número e da perseverança. Refere-se ao futuro que os jovens aguardam, à qualidade de vida religiosa que encontram e que eles mesmos podem oferecer. É acertada a política de muitos institutos distribuírem poucos jovens pelas comunidades obrigando-os a viverem com pessoas mais idosas em trabalhos que amiúde não sintonizam com seu sentido de vida religiosa? Estamos oferecendo um estilo de vida minoritário, mas autêntico e atrativo? Conseguimos viver o evangelho como uma alternativa de vida crível?

Estas perguntas não têm uma resposta unívoca, nem sequer entre os jovens. Tive oportunidade de comprovar isto em numerosos encontros e diálogos informais. Levam-nos, no entanto, a uma reflexão partilhada.

Uma maneira de contribuir com esta reflexão consiste em examinar a linguagem que usamos uns e outros. Nela colhemos a realidade, expressamos nossa forma de situarmo-nos na vida, revelamos nossos temores e sonhos.

Gostaria de examinar neste artigo uma dúzia de expressões que condensam duas formas de ver a realidade. Cada expressão se compõe de duas partes. A primeira nem sempre é atribuível aos idosos. A segunda não reflete exclusivamente a postura dos jovens. Parece-me que o verdadeiro critério de diferenciação não depende tanto da idade quanto da mentalidade. Estou consciente de que a polarização é um recurso muito arriscado porque coloca nos extremos as posturas e elimina os matizes que acontecem na vida real, mas, em troca, nos permite perceber duas posturas teóricas que nos servem como “tipos” para discernirmos o que estamos vivendo e, sobretudo, para ensaiarmos itinerários de encontro. Somente quando uns e outros percorremos juntos os mesmos caminhos aprendemos a sublinhar o essencial e a relativizar o acidental. Neste sentido, a formação permanente é hoje um dos grandes desafios que temos os institutos de vida consagrada. Quanto mais trabalharmos por “formarmo-nos juntos” a partir da missão que nos foi confiada tanto mais iremos encontrando-nos.

  

Onde você diz “cumprir os votos” eu digo “desenvolver os carismas”

Normalmente, para um religioso de mais de 60 anos a palavra “voto” não esgota tudo o que implica o seguimento de Cristo, mas condensa muito bem uma determinada forma de praticá-lo. Falar de “votos” significa evocar uma concepção da vida religiosa como vida de perfeição e de entrega plena. De maneira que “cumprir os votos” equivale a ser fiel a um projeto de seguimento. Os votos têm umas exigências mínimas, não negociáveis e umas exigências máximas, sujeitas à livre resposta à graça de Deus. Em poucas palavras: ser um bom religioso significa cumprir com honradez as exigências contidas nos votos e rubricadas publicamente na profissão. Milhares de homens e mulheres se sentiram felizes entendendo e vivendo sua vida nesta dimensão.

Muitos jovens não se sentem cômodos com a palavra “voto”, entre outras razões porque desapareceu praticamente da linguagem falada e seu uso os leva ao passado. Parece ainda que reduzem o seguimento de Cristo a um conjunto de cláusulas que se deve cumprir para que o contrato funcione. Em geral, continuam usando esta linguagem porque não apareceu outra melhor. Mas às vezes falam de carismas evangélicos e vão mais além da terna clássica. Para vivermos hoje o estilo de vida de Jesus, o Espírito nos presenteia a capacidade de sermos castos, pobres, obedientes, misericordiosos, alegres, pacíficos... Estes traços possuem uma enorme carga contra-cultural e, além disso, estão em contínua evolução. Nós nos “vamos fazendo” castos e pobres e obedientes e misericordiosos... A fidelidade não consiste tanto na escrupulosa observância das suas implicações canônicas quanto na capacidade de crescer cada dia, de incorporar novas perspectivas, de alargar horizontes.

Um jovem religioso expressava algo disto com estas palavras: “Meu sonho deixa de lado palavras complexas e dá passagem à simplicidade. Onde a pobreza religiosa não gera tantas discussões, mas é uma realidade do coração. Onde a obediência não se vive como luta ou resignação, mas como verdadeiro diálogo desde Deus. E onde, em vez fazermos confusão com a castidade, temos confiança de que nos ajuda a viver com um coração desprendido e encarnado”.

Depois de dar várias voltas sobre o assunto creio que uns e outros fazem referência à mesma questão. Parece-me que não leva a nada embrenhar-se em discussões de escola. A plausibilidade das explicações se mede, sobretudo, pela energia que possuam para fundamentar solidamente uma opção de vida e para canalizar todas as energias para ela.

Esta mesma observação caberia com respeito às expressões seguintes. Não se trata de limar as arestas do conflito, mas de discernir o que mais conduz a um verdadeiro encontro inter-generacional.

 

Onde você diz “vida comunitária” eu digo “relações pessoais”

Quando um religioso idoso se queixa de alguns jovens que não valorizam a vida comunitária se refere, em geral, a algo muito concreto: à falta de regularidade nos momentos de oração e refeições, à tendência a estar amiúde fora de casa, etc. Para ele ou para ela, rezar sempre juntos, partilhar as refeições, prestar contas detalhadas das entradas e saídas, estar sob o mesmo teto, assumir as tarefas domésticas, são as traduções mais verificáveis de um autêntico espírito comunitário. Tudo o resto (partilhar sentimentos, discernir juntos os desafios da realidade sócio-eclesial, acolher os outros) está bem, mas soa um pouco a música celestial: “Quem não é fiel no pouco...”.

Em geral, os jovens valorizam também estas doces rotinas da vida em comum, mas somente na medida em que favoreçam uma verdadeira experiência de comunhão e estejam a serviço da missão. Provém de um ambiente em que as relações pessoais (entendidas como proximidade e escuta, como âmbito de gratificação) são imprescindíveis para não morrerem asfixiados nesta sociedade anônima que lhes tocou viver. Por isto valorizam tanto os recintos quentes. Expressava-se assim um jovem religioso: “Como característica a ser mais cuidada ou cultivada em nossa vida religiosa vejo a formação de comunidades-lar, comunidades fraternas onde os que a integram sejam merecedores de seus irmãos, onde antecipem a vivência das tarefas evangelizadoras, onde encontrem força para ser fermento. E como não, onde a porta se mantenha sempre aberta para os convidados”.

Por isso, quando não encontram estas características, acham que a vida comunitária não vale a pena, embora ofereça regularidade e observância. A “ordem comum” costuma significar muito pouco para uma geração que vive desordenadamente, que fez do caos seu mar de navegação, sua estratégia de escape diante de tantos mecanismos de controle.

Os jovens, por outra parte, não entendem porque a ordem comunitária deva prevalecer sobre as exigências da missão. Para muitos lhes custa aceitar que a vida comunitária se regula de acordo com os velhos hábitos domésticos e não de acordo com as exigências da missão. Por que empenhar-se, por exemplo, em rezar vésperas nas sextas feiras às 9 da noite se nesta hora os mais jovens costumam estar reunidos com as pastorais.

Enfim, uns e outros estão chamados a percorrerem juntos o verdadeiro itinerário da comunhão, que encontro perfeitamente condensado no prólogo da primeira carta de São João. Quando anunciamos “o que vimos e ouvimos” sobre a Palavra de vida se cria uma profunda comunhão que nos vincula com o Pai e com Jesus Cristo e com todos aqueles que partilham a experiência comunitária. Desta maneira a alegria é completa. Pode haver, pois, para idosos e para jovens, uma autêntica vida comunitária que não parta da partilha da fé pessoal? Naturalmente, esta partilha não se identifica com intercâmbios verbais, mas exige fazer explícita a fé que anima nossas vidas com aqueles gestos e palavras que se tornam inteligíveis para todos. Sem comunhão de fé não há vida comunitária.

 

Onde você diz “levar adiante as obras” eu digo “imaginar o futuro”

Quem se encontra na etapa do “adulto maduro” (para usar a expressão de Erikson), quer dizer, entre os 40 e os 65 anos, sabe que o amor, com o passar do tempo, além de intimidade, implica solicitude e produtividade. Vale muito o ditado “obras são amores e não boas razões”. Por isto valoriza tanto dar vinte aulas semanais, abrir todos os dias a igreja às sete da manhã (faça frio ou faça calor), levar adiante a produção de pastas ou atender o telefone nas horas da sesta.

O jovem religioso não entende que estas preocupações, sem dúvida, necessárias, absorvam de tal maneira as pessoas que lhes impeçam imaginar outra coisa. Sente que se emprega energia excessiva em “fazer coisas” em detrimento de outros valores que são imprescindíveis para a harmonia pessoal e comunitária. Valoriza o trabalho, mas somente quando está integrado em um ritmo de vida saudável. De modo diferente do que acontecia em outras épocas, quando um religioso ou uma religiosa trabalhadores não são, simplesmente, modelos de referência, especialmente se o excesso de trabalho desvia a atenção das fontes de espiritualidade ou das relações pessoais. Por isto, o jovem religioso experimenta uma grande rebeldia interna diante de tudo o que soe a estilo empresarial.

Para alguns idosos, esta mentalidade dos jovens denota só o idealismo de uma geração que sabe que vai ter tudo ao seu alcance, sem grande esforço. Têm algo de razão. É freqüente esta atitude brotar da preguiça, de um certo infantilismo fomentado por instituições que cobrem demais as costas. Mas significa também uma luz vermelha que parece advertir-nos: “atenção” trabalhar muito não significa ser mais feliz ou fazer mais felizes os outros! Há vida, não somente quando fazemos o que devemos fazer, mas quando deixamos de fazê-lo para imaginar que nossa vida poderia ser de outra maneira, que poderia abrir-se a outras pessoas, que poderia implicar outras ações.

Diligentes ou preguiçosos, todos nós estamos chamados a “produzir fruto”, não simplesmente a “fazer coisas”. Dar fruto é a conseqüência de estarmos inseridos na videira e na realidade. Só então temos a certeza de que os caminhos imaginados não são ilusões ou quimeras.

      

Onde você diz “fidelidade à oração” eu digo “procura de sentido”

Todas as constituições acentuam a necessidade da oração. E, em geral, há uma grande coincidência na proposta de práticas concretas. Costumam falar de oração pessoal e comunitária, de meditação da Escritura, de Eucaristia diária, de algumas devoções particulares, de retiro mensal, de exercícios espirituais anuais. Para os religiosos idosos estes meios são, em teoria, dinamismos que mantém o vigor da vocação. Por isso, costumam falar amiúde deles.

Os jovens também subscrevem isto até com menos reticências que em outras coisas, mas experimentam que, no fundo, não há nada mais perigoso que a oração. Há religiosos e religiosas idosos a quem uma oração humilde mantida durante muitos anos os têm transformado em pessoas serenas, entregues, alegres, tolerantes. Mas, em alguns casos, por trás de uma prática assídua se esconde uma fuga da realidade. Participar todos os dias das Laudes e Vésperas não significa necessariamente que buscamos a Deus com todo nosso coração e que vinculamos esta busca a um amor sincero às pessoas. Os jovens têm um sexto sentido para advertir quando uma oração é expressão de busca e quando é só uma rotina a mais das que configuram o estilo de vida dos religiosos e das religiosas. Naturalmente, podem equivocar-se, mas sua observação nos faz cair na conta de que a vida de oração vai muito mais além da regularidade na prática de alguns atos comuns. Que significa uma oração que não nos ajude a viver em verdade? Que acontece com uma oração na qual nunca ressoam as situações dos membros da comunidade ou dos seus arredores?

“Vossa face buscarei, Senhor, não me escondais vossa face”.Creio que este versículo poderia estar escrito na capa da liturgia das horas dos religiosos jovens. Um deles expressava sua inquietação assim: “Para mim, o sonho da vida religiosa consistiria em que os religiosos pudessem viver a plenitude da aliança de amor com o Senhor, de tal forma que enchessem de felicidade toda sua vida. Gostaria que fossem pessoas assentadas em seu próprio centro onde brota a força do Amado que deve fazer chegar a todos aqueles com os que se entra em contato”. A mais de um religioso idoso esta linguagem pode soar espiritual demais. E, no entanto, expressa a procura de sentido das novas gerações. Não esqueçamos que não procedem de um contexto social em que a fé se dá por suposta (como acontecia no contexto social em que cresceram os que hoje são idosos), mas que crer supõe uma vitória sobre muitas forças contrárias.

Sabemos que buscar não é fácil. O desejo espiritual dos mais jovens nem sempre vai acompanhado de uma busca profunda, constante, partilhada. Amiúde fica afogado pelas preocupações imediatas. Aproveitar estas falhas para chamar os jovens de superficiais seria não aceitar a responsabilidade de acompanhá-los e apoiá-los. Poderia ser inclusive a forma de esconder nosso fracasso com o fracasso dos demais.

Enfim, idosos e jovens, sem limite de idade, somos convidados a dizer cada manhã: “Ó Deus, Vós sois meu Deus, por Vós madrugo”. E, depois, devemos verificar se estas palavras dão sentido às pequenas ou grandes opções que vamos fazendo ou são só a etiqueta piedosa que envolve uma vida descrente.

        

Onde você diz “austeridade de vida” eu digo “partilhar o que somos e temos”

Alguns jovens, com um tom de ironia, dizem que a austeridade é uma virtude do pós-guerra, forjada em tempos de escassez, quando se contava com um só chuveiro em cada convento e se deveria aproveitar os envelopes de papel usados como papel rascunho. Hoje, os jovens preferem falar de desenvolvimento sustentável, de qualidade e simplicidade de vida, de solidariedade com os pobres. Apenas usam termos como austeridade ou pobreza, no sentido em que costumam usá-los os idosos. Para as gerações que viveram tempos de penúria, no entanto, a austeridade representa um estilo de vida que se preserva do consumismo, favorece a economia e dispõe para a vida espiritual. Pode ser que em alguns casos nesta economia reflita um espírito de mesquinhez, mas na maior parte economizar significa aumentar a capacidade de partilhar.

Os jovens são muito sensíveis ao fato de partilharem, mas talvez não tanto de acordo com as condições que lhes permitem fazê-lo. Admiram a simplicidade de vida, mas não medem escrupulosamente o que se gasta ou se economiza, porque para eles isto não tem muita importância e, sobretudo, porque, como costumam dizer os idosos, não são eles que se preocupam em ganhá-lo.

Alguém terá que ajudá-los, a uns e a outros, a caírem na conta de que, hoje, o rosto da pobreza religiosa se chama solidariedade. Teria outro assunto sobre o qual dar mais importância que o das desigualdades que clamam aos céus? E que, portanto, sem partilhar a sorte dos necessitados, tudo o resto perde sentido. E alguém terá que mostrar-nos que sendo ricos também não queremos partilhar, e que a solidariedade vai muito ligada à simplicidade de vida. E que ambas as atitudes (solidariedade e simplicidade) nos permitem assemelharmo-nos a Jesus.

 

Onde você diz “maturidade afetiva” eu digo “o risco da relação”

Os mais velhos que tratam os jovens de longe costumam dizer que os jovens de agora são afetivamente frágeis, imaturos, dependentes, que necessitam curar muitas feridas; em poucas palavras, que são imaturos afetivamente e que, portanto, vão encontrar muitas dificuldades para viverem com alegria a castidade. Gostam de contar casos de jovens religiosos que abandonam seus institutos por experiências de namoro. Costumam criticar o uso exagerado do telefone ou da internet. Ficam chocados com os gestos “ambíguos” que observam nos jovens. E às vezes, sem dizê-lo, invejam a liberdade com que estes mesmos jovens parecem comportar-se no âmbito das relações.

    Os mais jovens não acabam de entender que significa esta imaturidade, em parte, porque o ponto de vista é diferente. Para um mais velho, a maturidade está bastante ligada ao controle dos sentimentos.  Para um jovem, a maturidade tem a ver com a capacidade de assumir os riscos que implicam as relações pessoais.

    Há idosos “maduros” que não tiveram oportunidade de liberar a enorme capacidade de ternura que levam dentro. E irão ao cemitério com sua maturidade, mas com o coração um pouco encolhido e com a sensação de não terem vivido a vida. E há jovens que não sabem que pode haver relações nem sempre gratificantes que dão sentido a toda uma existência.

    Uns e outros estão chamados a redescobrir o carisma evangélico da castidade em um contexto social que não sabe como encaixar um estilo de vida que à primeira vista parece repressivo. Onde a castidade gera capacidade de doação, de ternura, de solidariedade com os excluídos dos circuitos afetivos, o carisma se faz crível. Nisto têm razão os mais jovens. O que acontece é que esta libertação, que é graça, vai acompanhada de um treinamento feito à base de renúncias, de autocontrole, de vigilância. Os mais velhos o sabem por experiência. Conjugar ambas as dimensões nos permite viver com realismo o dom recebido.

 

Onde você diz “obedecer” eu digo “buscar juntos”

Em geral, aos mais velhos lhes custa obedecer, embora tenham treinado durante anos em acatar: “Se manda o Superior....”. Amiúde, libertos de um sistema religioso demasiado regulamentado, muitos viveram em terra de ninguém, o melhor terreno para que crescer livre o individualismo. Um adulto “obrigado” a comportar-se como uma criança durante muitos anos reage adotando o papel de“adolescente”. Muitos idosos aprenderam a conjugar uma obediência obsequiosa no foro externo com um feroz individualismo interno.

Os jovens foram educados em um novo conceito de obediência. Obedecer significa para eles desenvolver a capacidade de escutar. Esta escuta é a que nos prepara para o discernimento. Implica, naturalmente, uma abertura à própria consciência, à comunidade à qual pertence, à situação em que nos toca viver nossa vida religiosa. Esta é uma perspectiva libertadora, mas difícil de alcançar sem uma árdua aprendizagem. Amiúde se fica também nos primeiros degraus do subjetivismo e do narcisismo.

Como redescobrir juntos, mediante um processo de conversão, o que significa aprender a ser o que cada um é para entregar-se, valorizar a autonomia pessoal para colocá-la a serviço de um projeto comum, sentir-se tão adulto que nos sintamos felizes obedecendo aos demais? Parece-me que uma das mediações culturais para esta aprendizagem passa pela prática do discernimento em comum. Disto não gostam nem os jovens nem os mais velhos porque supõe um enorme esforço de escuta, de diálogo e de desprendimento pessoal. Existe uma ascética da procura em comum que exige de todos novas atitudes, que vão mais além do acatamento irreflexivo e do individualismo solitário.

 

Onde você diz “contar com os leigos” eu digo “partilhar a missão”

No nosso contexto há poucos religiosos que não vêem a necessidade de estabelecer relações mais profundas com os leigos. O que acontece é que para alguns estas relações estão marcadas pelo esquema da colaboração assimétrica. “Contar com os leigos” significa em muitos casos lançar mão de homens e mulheres leigos para levar adiante algumas obras que em outros tempos podíamos gerenciar nós mesmos sozinhos. Nas instituições educacionais e de saúde esta colaboração já existe há muito tempo.

Os mais jovens não gostam desta maneira de falar porque lhes parece devedora de uma eclesiologia que não leva a sério a realidade de comunhão da Igreja. Costumam usar outra expressão que foi se popularizando: “missão partilhada”. Não se trata de um jogo de palavras. O que está em primeiro lugar é a missão, o encargo que todos recebemos de ser sinais e artífices do Reino de Deus. Para levar a cabo este compromisso histórico o Espírito suscita na igreja diversos carismas e ministérios. A legítima diversidade está a serviço da missão comum, na qual todos partilhamos o que somos e o que temos.

Esta maneira de entender as coisas não suporia maiores problemas se não implicassem algumas mudanças no estilo de vida. Implica acostumarmo-nos a discernir juntos, a trabalhar em equipe (às vezes dirigidas por leigos), a partilhar a oração e a formação, a abrir mais nossas casas e nossa mesa, a modificar alguns hábitos econômicos, etc. Aqui é onde costumam aparecer os problemas. Há jovens religiosos que dizem encontrar caras feias em sua comunidade quando levam alguém para a oração ou para a refeição. Alguns mais idosos se defendem alegando que toda a comunidade tem direito a preservar sua intimidade. Por trás desta frase redonda e verdadeira se esconde amiúde o temor de mudar hábitos inveterados, o medo ao “outro”. Mas também se perde uma oportunidade de crescimento. Onde estão nossos medos costumam aninhar também as oportunidades para amadurecer um pouco mais.

 

Onde você diz “pastoral vocacional” eu digo “alternativa de vida”

Se há algo que caracteriza os mais velhos é sua preocupação pela falta de vocações. Freqüentemente perguntam: “Há algum noviço para este ano? Como vão as vocações?” Por trás destas perguntas há quase sempre um sincero desejo de partilhar a própria vocação e de contar com mais pessoas para continuar anunciando Jesus Cristo. Mas, como é natural, acontece também uma preocupação pela sobrevivência: “Quem vai cuidar de mim? O que acontecerá com tudo o que construímos?” Há uma pastoral vocacional que surge do entusiasmo por partilhar a própria alegria e há uma pastoral vocacional que surge do medo. A primeira é convincente mesmo quando não move muitos. A segunda exerce uma sutil violência sobre as pessoas e dispara os anticorpos vocacionais.

Os jovens religiosos não são agressivos na hora de propor a outros este caminho. Em geral, pecam por serem discretos; são alérgicos a tudo o que soe proselitismo. Gostariam que a vida mesma, com toda sua força alternativa, constituísse a melhor propaganda, mas uma e outra vez descobrem que a vida real é demasiadamente normal, se parece muito com a que eles mesmos levavam antes de entrarem no noviciado e, apesar de que conheçam como ninguém as pessoas da sua geração, não sabem bem quais são os melhores caminhos para uma proposta desinteressada. Costuma-se dizer que são os jovens que deveriam chamar os jovens. Tenho observado, no entanto, que muitos jovens religiosos, que conhecem bem seus contemporâneos, não acabam de acreditar na força alternativa da vida que eles mesmos professaram. Acham que não têm a garra suficiente para competir com outras propostas. E, como não estão dispostos a servir-se dos meios tradicionais, eles optam muitas vezes, pelo silêncio ou por um acompanhamento discreto.

Quando nos sentamos à mesa, todos descobrimos que a pastoral vocacional não pode dissociar-se do nosso estilo de vida. E se não nos atrevemos a chamar alguém, é porque precisamos acreditar mais profundamente no dom de Deus, precisamos experimentar o que nos faz felizes, devemos superar a tentação de acreditar que esta vida é uma “pobre coisa” no supermercado de propostas com que se encontram os jovens de hoje. Às vezes, usamos a pastoral vocacional como arma e nos acusamos mutuamente do que fazemos ou do que deixamos de fazer. Mas, num dado momento de sinceridade coletiva, deveríamos reconhecer, idosos e jovens, que uma autêntica pastoral vocacional nos colocaria a todos contra a parede da autenticidade. E isto é muito forte. Gostaríamos de ter filhos por clonação ou por encomenda, sem pagar o preço de uma gestação lenta, sem assumir os custos de uma educação complexa, sem modificar no mínimo possível os nossos cômodos hábitos de vida.

 

Onde você diz “perseverança” eu digo “fidelidade criativa”

“Quantos entraram no noviciado? Quantos ficaram até agora?”Estas perguntas são típicas dos mais velhos: “Da minha turma ficaram todos menos um (ou todas menos uma)”. Os mais idosos experimentaram um interno regozijo ao comprovar que são mais e aparentemente mais consistentes que os jovens. Desfrutam celebrando as bodas de ouro da profissão ou qualquer outra efeméride. Praticam uma sorte de atletismo de resistência. São homens e mulheres de “longa duração”. Se este fato maravilhoso não se utiliza como arma costuma exercer um influxo positivo nos mais jovens. Embora estes às vezes reajam com humor frente às “medalhas dos avós”, internamente reconhecem que a graça de Deus operou maravilhas nestas vidas entregues ao longo de cinqüenta ou sessenta anos. E se perguntam por sua própria resposta.

Contudo, os jovens não costumam usar a palavra “perseverança”. Talvez gostem mais da expressão “fidelidade criativa”, tão usada no âmbito da “Vida Consagrada”. Como os jovens da sua geração, eles e elas não aspiram tanto durar uma vida inteira. E viver, nesta etapa da existência, significa mudar, experimentar novas coisas, colocar à prova as energias de que se dispõe, provar a aventura. Não admiram tanto os que duraram muito, mas aqueles, apesar da idade avançada, que conservam o gosto pela vida, destilam humor e sabedoria, apóiam os novos projetos, embora não possam participar diretamente deles.

É possível ser velho aos trinta anos? Claro que sim! Basta encontrar um lugar confortável, navegar com o piloto automático e renunciar a tudo o que signifique risco. Este estilo de vida pode durar muitos anos, contar com todas as bênçãos canônicas, mas dificilmente poderia ser qualificada de “fiel”. Mas, pelo contrário, devemos estar permanentemente dizendo com Samuel: “Fala, Senhor, que teu servo escuta”, para, a seguir, repetir com Maria: “Aqui está a serva do Senhor. Faça-se mim segundo tua Palavra”.

 

Onde você diz “é preciso discernir” eu digo “é preciso arriscar”

Quando se fala de um novo projeto que supõe alterar o que estamos fazendo, os mais velhos costumam usar uma frase: “é preciso discernir; não se pode agir como tontos ou loucos”. Alguns jovens sabem o que significa “este” discernimento: deixar que tudo continue como está. Por isto, às vezes, exageram as coisas, fazem propostas irrealizáveis. Mais que formular compromissos fazem protestos, embora sem a maldade de décadas passadas. O pior de tudo é que quando, às vezes, se oferece a oportunidade de levar estas propostas à prática, alguns se retiram: “Não é, realmente, o que eu queria dizer...”

Por onde vão algumas destas propostas “arriscadas” que não convém discernir demais? Cedo a palavra a um jovem religioso: “Diversificar nossa missão abrindo nossos olhos às novas necessidades do nosso século: imigrantes, mulheres maltratadas, crianças de rua, casais separados, famílias destruídas”. Talvez quem escreveu isto saiba muito bem que está enunciando frentes que superam as possibilidades do seu Instituto. Se o faz é porque precisa colocar nome ao que sente por dentro. Aqui é onde a sabedoria dos mais velhos pode ajudar a moderar os simples desejos e a encaminhar as disposições melhores. O que acontece é que amiúde os mais velhos estão muito ocupados em levar avante suas próprias responsabilidades para serem sensíveis aos novos ares que respiram os mais jovens.

O árbitro desta guerra é a realidade. Fora de um contato direto com as pessoas e as situações, a discussão teórica naufraga. Conheci algumas comunidades de idosos e de jovens inseridas em ambientes populares que falavam a mesma linguagem. Em virtude de um comum linguajar interno? Não, em virtude de um mesmo compromisso com a realidade que partilhavam.

 

Onde você diz “o futuro que nos aguarda” eu digo “o presente que nos desafia”

Algumas atitudes são quase pura biologia. Como se pode dizer a uma pessoa de 80 anos que ande todo o dia de um lugar a outro, mudando seu ritmo habitual, querendo destruir seu mundo? É possível pedir a um de 25 anos que se ajuste a um patrão muito rígido e que mostre sensatez? É inútil empenhar-se em violentar os ciclos vitais. Esta é uma chave sábia para entender alguns dos nossos desencontros. É normal que ao ancião, com todo o tempo do mundo, se insista de vez em quando em que a vida religiosa é oração. E é também normal que um jovem, na plenitude de suas forças, tenha dificuldades para repousar um pouco e “perder” tempo orando. Às vezes somos o que nossa biologia nos permite ser. E talvez tenha que ser assim em boa medida.

Os que mais falam do futuro da vida religiosa são os mais velhos. Os jovens, pouco amigos em bater à porta da história e muito longe do que acontecerá amanhã, são incuravelmente presentistas. Por isto se zangam quando seus institutos adiam “sine die” uma reorganização de estruturas, ou quando devem assumir projetos a médio e longo prazo. A realidade muda tão depressa que o que importa é viver o presente.

Estas duas posturas se prestariam a um confronto interminável. Uns e outros poderiam colocar a galope toda sua cavalaria ideológica para acabar concluindo que cada um diz o que lhe “permite” dizer a etapa da vida em que se encontra. Talvez o desenlace possa ser então um sorriso amplo, uma tolerância profunda e, sobretudo, um profundo sentido de fraternidade. Hoje por você, amanha por mim.

 

Gonzalo Fernández Sanz, cmf.

 


[1]Assim vê as coisas, por exemplo, a teóloga leiga Marifé Ramos em uma conferência feita nas Jornadas Nacionais de Pastoral Juvenil Vocacional em Madri em outubro de 2001. O texto aparecerá publicado na revista “Todos Uno”.

[2]Esta é a opinião expressa por J.M. IRABURU, Causas de la escasez de vocaciones (Cadernos A5), Fundación Gratis Date, Pamplona 1987.